segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Encontros e Desencontros

Já é tarde, e enquanto te deleitas com a sobremesa, entre sorrisos tímidos, vais contando, descomprometida e espontaneamente, peripécias fragmentadas da tua existência. Não te conheço, e as tuas palavras parecem fantásticas, assim como o dramatismo e a expressividade que lhes imprimes, contudo não as oiço. Prefiro antes observar a tua boca, que lentamente se compraz com os últimos momentos de doçura. Os teus lábios, ainda doces, carnudos, suculentos e rosados, mexem-se pausada; lascivamente, adivinhando a contradição da ingenuidade que tentas transmitir, e a boca, como que desenhada por um exímio pintor renascentista, aos poucos e poucos parece quedar-se assim, meio entreaberta à espera de resposta. No entanto que poderia dizer face a tal perfeição? Apenas me limitei desajeitadamente a assentir e a exprimir tal rejúbilo. A sobremesa pareceu-me dulcíssima; agora salgada, embora me tenha sabido a pouco, ficam promessas para um novo encontro…

domingo, fevereiro 08, 2009

Reflexões Bairristas

Vocês não sabem mas eu vou vos contar…
O sr. Anatólio da Assunção, que mora na Travessa da Rabicha, é um tarado filatélico….é apanhá-lo escondido a lamber selos, todos os Domingos depois da missa.
Já a Leonor Cristina, que todos conhecem por Nô-nô, esteticista exímia não fosse a miopia, ali da rua da Triste Feia, é tarada por snack-bares começados por G.
A avó Urminda-de-Jesús, que passa as tardes no Beco da Amorosa, é tarada columbófila, não há pombo que ela não entupa com milho e derivados.
O Carlinhos, criança idiota dada a brigas, morador na Rua da Bempostinha, é tarado pelos saltos altos da mãe.
Já o Dom Vicente III, fidalgo quixotesco sem vintém, da Travessa do Abarracamento de Peniche, é um tarado nebuloso, quer isto dizer que tira fotos a nuvens com feitios esquisitos.

E nós cá, já se vê, somos tarados vegetais! Viciados na verde Alface, seus malucos e suas ruas surreais…dizem

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Voltar a Casa

No meu bairro toda a gente faz barulho e barafusta,
falam mal, são insolentes,
quanto tudo muito custa.

É o Manel Sapateiro, mais a Chica do lugar,
é o António Marceneiro, mais a Micas do Gaspar,
é a Zefa do Carriço, o Zé barbeiro e o filho,
é tamanho o rebuliço q'anda tudo num sarilho.

Foi ontem ca Dona Rosa se fez passar por senhora,
teve zanga ca vaidosa que a filha era bordadoura.
a questão de modos era que uma tal de Dona Marmiça
que a gritar era uma fera e foi chamar a polícia.

E veio o Manel Sapateiro, mais a Chica do lugar,
o António Marceneiro, mais a Micas do Gaspar,
a Zefa do Carriço, o Zé barbeiro e o filho,
foi tamanho o rebuliço q'andou tudo num sarilho.

Quando tudo tava em paz e já ninguém se lembrava,
entrou no pátio um rapaz a vender castanha assada,
eu não sei o que ele fez, viu-se cestos pelo ar,
e catrapuz outra vez começou tudo a berrar.

E veio o Manel Sapateiro, mais a Chica do lugar,
o António Marceneiro, mais a Micas do Gaspar,
a Zefa do Carriço, o Zé barbeiro e o filho,
foi tamanho o rebuliço q'andou tudo num sarilho.

Como é bom pertencer aqui...
como sabe bem voltar a casa.

Princesa

Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente que me envenenou
Senhora, e agora, me diga onde eu vou
Senhora, serpente, princesa...

SALVÊ CAETANO

Devaneios Ataráxicos

A cama continua por fazer e o quarto por arrumar, no número 28 da Calçada de Santo André a caminho da Graça. O carro está estacionado em segunda fila junto ao Jardim das Pichas Murchas e os primeiros raios de sol e o barulho matinal teimam em entrar pelas persianas, velhas e enpodrecidas, deixadas entreabertas na madrugada anterior depois de uns copos a mais.

O despertador toca violentamente trazendo-me à realidade a existência penosa de mais um dia de trabalho, mas o som é abafado pela lânguida ternura quente dos lençóis de inverno. Tudo pára, até o malfadado e irritante despertador. O sonho volta…

De repente um som estridente irrompe pela janela e num salto saio da cama como se de uma ordem se tratasse. Não era o som do despertador, era algo ainda pior, cortante, grave, raivoso, metálico; seguido de gritos ensurdecedores e buzinas tresloucadas. Sem pensar, dirigi-me à janela, aparentemente um hábito instalado em tempos de ócio de todos os habitantes desta rua. Com um só gesto, abri-a de par em par e debrucei-me sobre o pequeno varandim metálico. Os olhos ainda ensonados cegaram momentaneamente com tamanha luminosidade reflectida das paredes há muito caiadas de branco, e só passados alguns segundos consegui finalmente observar o panorama caótico de um começo de dia como tantos outros.

O condutor do eléctrico parecia furioso e mesmo sem o ouvir percebia-se pela expressão a sua raiva e desespero. Todos os dias alguém decidia estacionar o carro em sítios impróprios à passagem do carro eléctrico, e todas as manhãs, à hora do primeiro turno, sucedia o mesmo episódio, acompanhado de gritos e buzinas, num tamanho reboliço que punha todo o bairro em barulho e barafusto, com os condutores a berrarem a plenos pulmões e a gesticularem violentamente, rejubilo dos primeiros turistas curiosos que se acotovelavam nas coxias à procura do melhor ângulo para as fotografias. Mas nesta manhã tudo parecia difusamente diferente. Entre as crianças que gritavam e corriam para a pequena multidão que se tinha juntado ali; e os pombos que voavam descompassada e assimetricamente, assustados com o barulho matutino, algo me prendeu o olhar, enquanto me assegurava uma última vez que o carro não me pertencia e me preparava para fechar a janela e voltar a dormir. Saída do meio do pequeno mar de gente, que impacientemente esperava o malfeitor, julgado por toda a manhã nos tascos soalheiros do bairro; parecia distante, no seu passo seguro, gracioso e ligeiramente desajeitado, descompensado pelo peso de um saco que trazia, e que lhe conferia ainda mais beleza. O negro cabelo esvoaçante deixava a descoberto a sua face, e a luz inebriante e alva aclarava a sua tez branca ligeiramente ruborizada. Os olhos, rasgados e a sua compleição física faziam lembrar uma princesa vinda do oriente, que deambulava rua acima, iluminando ainda mais tudo à sua passagem. Será que seria real tamanha beleza? Como poderia ainda não a ter visto por aqui? Princesa. Rainha. Gueixa. Beleza Rara dum mundo longínquo…

Observei bamboleante o seu percurso até a perder de vista e de repente…apenas um murmúrio no meu ouvido, uma ligeira sonoridade longínqua materializada compassadamente a cada instante.

O despertador voltava a tocar. Olhei-o de soslaio, já estava atrasado. Tudo não passava de um sonho. O sonho mais lindo de uma princesa que há muito esperava ver. Desconcertante não poder voltar ao sonho mas o sol já ia alto, saí há pressa para mais um dia caótico.

A cama continua por fazer e o quarto por arrumar, talvez na ânsia de dentro em breve reencontrar tal beleza. Quem sabe…