terça-feira, fevereiro 03, 2009

Devaneios Ataráxicos

A cama continua por fazer e o quarto por arrumar, no número 28 da Calçada de Santo André a caminho da Graça. O carro está estacionado em segunda fila junto ao Jardim das Pichas Murchas e os primeiros raios de sol e o barulho matinal teimam em entrar pelas persianas, velhas e enpodrecidas, deixadas entreabertas na madrugada anterior depois de uns copos a mais.

O despertador toca violentamente trazendo-me à realidade a existência penosa de mais um dia de trabalho, mas o som é abafado pela lânguida ternura quente dos lençóis de inverno. Tudo pára, até o malfadado e irritante despertador. O sonho volta…

De repente um som estridente irrompe pela janela e num salto saio da cama como se de uma ordem se tratasse. Não era o som do despertador, era algo ainda pior, cortante, grave, raivoso, metálico; seguido de gritos ensurdecedores e buzinas tresloucadas. Sem pensar, dirigi-me à janela, aparentemente um hábito instalado em tempos de ócio de todos os habitantes desta rua. Com um só gesto, abri-a de par em par e debrucei-me sobre o pequeno varandim metálico. Os olhos ainda ensonados cegaram momentaneamente com tamanha luminosidade reflectida das paredes há muito caiadas de branco, e só passados alguns segundos consegui finalmente observar o panorama caótico de um começo de dia como tantos outros.

O condutor do eléctrico parecia furioso e mesmo sem o ouvir percebia-se pela expressão a sua raiva e desespero. Todos os dias alguém decidia estacionar o carro em sítios impróprios à passagem do carro eléctrico, e todas as manhãs, à hora do primeiro turno, sucedia o mesmo episódio, acompanhado de gritos e buzinas, num tamanho reboliço que punha todo o bairro em barulho e barafusto, com os condutores a berrarem a plenos pulmões e a gesticularem violentamente, rejubilo dos primeiros turistas curiosos que se acotovelavam nas coxias à procura do melhor ângulo para as fotografias. Mas nesta manhã tudo parecia difusamente diferente. Entre as crianças que gritavam e corriam para a pequena multidão que se tinha juntado ali; e os pombos que voavam descompassada e assimetricamente, assustados com o barulho matutino, algo me prendeu o olhar, enquanto me assegurava uma última vez que o carro não me pertencia e me preparava para fechar a janela e voltar a dormir. Saída do meio do pequeno mar de gente, que impacientemente esperava o malfeitor, julgado por toda a manhã nos tascos soalheiros do bairro; parecia distante, no seu passo seguro, gracioso e ligeiramente desajeitado, descompensado pelo peso de um saco que trazia, e que lhe conferia ainda mais beleza. O negro cabelo esvoaçante deixava a descoberto a sua face, e a luz inebriante e alva aclarava a sua tez branca ligeiramente ruborizada. Os olhos, rasgados e a sua compleição física faziam lembrar uma princesa vinda do oriente, que deambulava rua acima, iluminando ainda mais tudo à sua passagem. Será que seria real tamanha beleza? Como poderia ainda não a ter visto por aqui? Princesa. Rainha. Gueixa. Beleza Rara dum mundo longínquo…

Observei bamboleante o seu percurso até a perder de vista e de repente…apenas um murmúrio no meu ouvido, uma ligeira sonoridade longínqua materializada compassadamente a cada instante.

O despertador voltava a tocar. Olhei-o de soslaio, já estava atrasado. Tudo não passava de um sonho. O sonho mais lindo de uma princesa que há muito esperava ver. Desconcertante não poder voltar ao sonho mas o sol já ia alto, saí há pressa para mais um dia caótico.

A cama continua por fazer e o quarto por arrumar, talvez na ânsia de dentro em breve reencontrar tal beleza. Quem sabe…

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